E hoje eu quero te apresentar uma Amazônia de muitos movimentos e sentimentos.
Vou começar te contando um pouco sobre mim... Se é que é possível falar de nós sem falar de onde moramos.
Nascida e criada no nordeste do Pará, nas margens do rio Marapanim (que significa borboletinhas do mar), filha de pai preto e mãe branca, neta de pescadores, lá estava eu.
Desde muito nova estava atenta sobre como eu pertencia à natureza. Minha família é repleta de pescadores, artesãos, agricultores e defensores florestais natos. Crescer dentro de uma reserva extrativista nos expõe desde muito cedo ao entendimento sobre como a mata e os rios nos sustentam. Marapanim foi meu berço dentro da Amazônia, saboreei meus primeiros frutos, aprendi o horário das marés, consegui me localizar através das estrelas, decodifiquei a medicina das plantas através dos remédios caseiros e dancei muito carimbó.
Daqui em diante, começa o meu trânsito por territórios.
Pela primeira vez saí em busca do acesso ao que nos é negado, como a educação. Marapanim tem poucas escolas, todas com muitas dificuldades que perduram até os dias atuais. Tive que a deixar com muito pesar. Para trás ficaram histórias, meus pais, meu irmão, amigos, frutos e o horário das marés.
Na adolescência me mudei para a metrópole da Amazônia, para melhorar meus estudos. Em Belém me desenvolvi como cabocla da cidade, que conhece as linhas de ônibus, o horário da chuva da tarde, os melhores almoços no mercado ver-o-peso e o calor no verão amazônico subindo pelo asfalto da Avenida Almirante Barroso.
Não foi fácil perceber como tudo ao meu redor se conectava, e muito mais difícil ainda entender que eu ainda estava dentro da floresta (só que em uma cidade grande). Conforme o correr dos dias, eu entendia aos poucos em quais lugares me situava na cidade e porque a maioria deles era invisível, violento e sempre preenchidos por pessoas iguais a mim. E na indiferença, o que nos unia era o desprezo social.
Dei meu primeiro passo e conheci o Coletivo Jovens de Meio Ambiente – Pará. Um coletivo que atua em causas socioambientais na cidade de Belém e estende o trabalho através de parcerias para outros municípios. Mas não é assim que eu descreveria o “CJ”. O Cj é uma rede de apoio de ativistas da Amazônia que carregam consigo sua cultura e sua luta por uma sociedade mais justa.
Dentro do coletivo eu pude me desenvolver de uma forma que mudou minha vida para sempre. Aprendi muito sobre pequenas e grandes ações e como elas têm impactos no nosso cotidiano, sobre como nossa cor nos difere, como nosso gênero nos difere, como nossa sexualidade nos difere, nosso poder aquisitivo nos difere. Na prática, sabemos tudo isso. Mas é aprofundando as discussões que conseguimos tecer maneiras de romper estigmas.
E foi assim, dentro do CJ pude desenvolver e coordenar projetos e ações sociais, debates, atividades transformadoras que metemos a mão na massa, me preparei profissionalmente para atuar no setor socioambiental. Atuei também no Greenpeace Brasil, como voluntária e facilitadora do grupo de Belém. Sendo uma das experiências mais completas da minha vida pelo apoio da instituição na minha formação como ambientalista.
No ápice desse momento fiz minha segunda movimentação territorial, dessa vez, voltando pro meu território de origem devido à pandemia do covid-19.Olhar pro meu país sofrendo com a política mais genocida já vista nos últimos anos foi devastador, não pensem que fortaleceu nossa narrativa – não fortaleceu, do contrário, nos adoeceu e machucou profundamente, deixando vários traumas. Manter a luta pelo meio ambiente e pela sociedade civil em meio ao preconceito exacerbado, desmatamento em alta, fome em crescimento dia após dia e das mortes pelo vírus e pela negligência governamental não me parece fortalecer algo.
Foram 10 anos em Belém. Até me deparar com a vida da minha cidade natal novamente. Muitas ressignificações foram feitas e pude enxergar e viver minha Marapanim de outras formas.
Em Março de 2021 aconteceu o motivo de eu estar aqui. Junto com mais 34 ativistas, pude compor o quadro de participantes de um programa de ativismo climático – o Muvuca. Poder socializar tantos temas importantes, aprender táticas e estratégias de mobilização, de projetos socioambientais e principalmente criar laços afetivos me fez acessar um novo caminho dentro do meu ser ambientalista. No meio de tantas adaptações, fui convocada para trabalhar no sul do Amapá.
Aí aconteceu a terceira movimentação territorial mais importante da minha vida.
Tornei-me Analista Executiva do Fundo Iratapuru, trabalhando com repartição de benefícios a partir do desenvolvimento de projetos socioambientais nas comunidades tradicionais da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru - RDSI. Eu nunca tinha vindo ao Amapá, e vim sem medo, para as margens do rio Jari.
Uma senhora, antes da minha viagem, me disse a seguinte frase “quando você chegar lá, tudo estará preparado para você”. Não foi diferente. O acolhimento que o nortista carrega na sua personalidade está atrelado à vivência de comunidade. Fui recebida por muitas famílias e em uma delas, pude me conectar com afeto e suporte, me ensinaram gírias locais, ‘tiquinhar’ peixe, sorrir e dançar como se estivesse em casa, porque eu estava.
Atualmente, trabalho com 4 comunidades tradicionais, com capacitação comunitária, orientação e implementação de projetos a partir da repartição de benefícios, bioeconomia de produtos florestais não-madeireiros e com muita diversão e banho de rio.
Se movimentar dentro da Amazônia requer coragem e atenção.
Transitar entre territórios requer autoconhecimento e conhecimento da terra. Você não pode entrar em um rio que não conhece e nadar até a outra margem. O que te espera? Piranhas? Poraquês? Pedras? Todas essas reflexões trazem um olhar anticolonial. Há muito tempo uma afirmação me fez chegar a tantas conclusões. Dizia “a Amazônia continua sendo uma colônia de exploração”. Essa afirmação me dói porque o cenário não muda para o colonizador, ele olha para o nosso território sem perceber que aqui já possui dono.
O nosso território é uma região vasta, mas não há um rio que não tenha um morador, não há uma árvore que não tenha importância e não há uma pessoa que não te saiba dizer como é viver, e te afirmo, sabe te dizer o que tem mudado no clima, os efeitos da exploração mineral e vegetal, os impactos locais diretos e indiretos, como mitigar efeitos da crise climática e afins. A Amazônia não é um vazio florestal e as pessoas são detentoras de muitos conhecimentos!
Se você é da Amazônia e não reconhece seu território, te convido a olhar sua rua com muita atenção, nesta pode haver inúmeras Kimberlys, Marias, Josés, que carregam histórias de seus territórios. Se você não é da Amazônia, que belo, nossas outras regiões são tão ricas quanto e também carregadas de movimentações e sensações. Sinta!
Deixo aqui meu recado para o futuro: Reconheça seu lugar e lute por ele. Seja você quem for.
Com carinho, Kimberly, do rio Marapanim ao rio Jari.